Castelo do Piauí: uma cidade que se reconstrói

PIAUÍ - Há um ano, a cidade de Castelo do Piauí estava em ruínas. Os escombros de uma tragédia tomavam conta do sentimento coletivo; um misto de dor e revolta, piedade e ódio, que deixavam a comunidade despedaçada. Não era para menos, diante do drama vivido por quatro adolescentes no dia 27 de maio de 2015.

Castelo do Piauí: uma cidade que se reconstrói. (Foto: Portal O Dia)
O caso teve repercussão internacional e sensibilizou a todos que tiveram conhecimento do estupro coletivo, praticado por quatro menores e um adulto, contra as jovens com idade entre 15 e 17 anos. Uma das vítimas morreu, um dos menores também, assassinado pelos outros três acusados no crime.

Restou às meninas sobreviventes, aos menores que cumprem a medida socioeducativa e ao Adão Sousa - acusado de ser o mentor do crime, terem força para reconstruir a vida. Da mesma forma, coletivamente, a cidade também se refaz.

A maior prova de solidariedade com as vítimas é dada através de um pacto de silêncio estabelecido entre os moradores de Castelo. Poucas pessoas, incluindo autoridades, gestores e gente próxima aos envolvidos, querem falar a respeito do que aconteceu. Todos entenderam, a partir de orientações dada por equipes de psicólogos, que relembrar é reviver a dor.

Resiliência para superar

O processo de superação da tragédia foi auxiliado pela psicóloga Grace Wanderley de Barros Correia e pelo psicólogo Jayme Panerai Alves, que estiveram em Castelo do Piauí nos meses de junho e novembro. Ambos são especialistas no atendimento a comunidades ou grupos vítimas de grandes traumas.

O casal atuou em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde 242 pessoas morreram queimadas após um incêndio na Boate Kiss. Eles também trabalharam na escola do Realengo, no Rio de Janeiro, onde 12 crianças foram assassinadas por um ex-aluno.

Em Castelo, o trabalho foi realizado na escola Francisco Sales Martins, onde as meninas estudavam. “Encontramos a comunidade destroçada, era muito sofrimento. As pessoas estavam amedrontadas, chocadas e tristes porque todos se conheciam. Era como se fossem uma grande família”, conta Grace.

Segundo Lucineide Silva, diretora da escola, ninguém sabia como trabalhar com aquela situação. “Professores não conseguiam dar aula e alunos não assistiam. Todos choravam muito porque havia laços fortes com as vítimas e os familiares”, lembra.

E foi exatamente esse sentimento coletivo que ajudou na trajetória de resistência. Grace Wanderley explica que trabalhou na perspectiva de uma rede solidária, das pessoas se encontrarem e se ajudarem na dor. “Quando voltamos, ficamos surpresos de ver que todos encontraram a força e aprenderam a continuar com a experiência”, disse.

A secretária de Assistência Social da prefeitura de Castelo, Ceres Vidal, destaca que a orientação dos psicólogos foi para que a cidade não cultivasse sentimentos de mágoa, rancor ou vingança. “Se a gente não erguesse a cabeça e não seguisse em frente, a cidade iria viver eternamente em luto. Era preciso virar a página”, explica.


Acolhimento e afeto

Um dos momentos mais importantes foi o retorno das adolescentes à escola Francisco Sales Martins. Mais uma vez, os sentimentos de solidariedade e afeto foram estimulados. A maior preocupação era evitar que os estudantes fizessem comentários negativos ou perguntas inadequadas.

Uma colega de escola, que prefere não relevar a identidade, lembra que a orientação sempre foi agir de forma acolhedora e não falar sobre o caso. “Tratamos as meninas com afeto e boa recepção, para elas não se sentirem envergonhadas ou com medo. Fugimos do assunto para não atrapalhar o cotidiano”, comenta.

Evitar a lembrança, obviamente, é impossível. Os traumas decorrentes de algo que mexeu tanto com o coletivo não poderiam acabar em 365 dias. “Ainda temos aquele receio de passear sossegada quando tem grupos de meninos em certo lugar, ou quando tem pessoas desconhecidas. Sentimos medo e insegurança, mas a polícia está fazendo várias rotas e isso nos tranquiliza mais”, relata a adolescente.

O que conforta o sentimento de medo, insegurança e até de revolta na população, é saber que as vítimas estão se recuperando. “Tudo nos leva a pensar no dia, mas as meninas estão estudando, seguindo suas vidas, morando em Teresina e dando continuidade ao tratamento”, destaca a estudante.

A diretora Lucineide tem o mesmo pensamento. “A gente não esquece, mas estamos superando. Nos ajuda saber que elas estão bem”, completa.

Sem culpa ou preconceitos

A análise bioenergética foi a técnica utilizada por Grace Wanderley e Jayme Panerai em Castelo do Piauí. A abordagem psicocorporal consiste em exercícios que trabalham o estress pós-traumático através de movimentos do corpo. O método é considerado eficaz para amenizar os sintomas comuns às pessoas em situação de grande sofrimento.

Segundo Jayme, os sentimentos após grandes tragédias podem ter graves consequências se não forem trabalhados de forma adequada. “O medo é o mais forte. Se ações não forem bem orientadas, a comunidade entra em um processo de repetição que pode acabar retraumatizando”, explica o especialista.

Em Castelo, o psicólogo destaca que todas as pessoas da cidade se colocaram no lugar das vítimas e dimensionaram em si mesmas a violência ocorrida, o que justifica a comoção geral criada em relação ao caso. “Elas são representação da comunidade. Um elemento do grupo, afeta a comunidade toda e da mesma forma é afetada por ela”, disse Panerai.

Por isso, é importante que a cidade consiga elaborar tudo que aconteceu e compartilhar experiências de forma orientada, para fazer a travessia do trauma. “A comunidade deve reconhecer tudo que aconteceu, verificar os aprendizados e seguir o seu caminho sem culpa. É preciso se libertar desse sentimento e se mover em outras direções, da sua vida normal e espontânea”, orienta o psicólogo.

Aliado a tudo isso, o respeito e a inclusão são obrigatórios, o que vale também em relação às famílias dos acusados pelo crime. “Que não haja segregação ou marginalização, pois isso não acrescenta na vida em comunidade. É preciso buscar a resiliência capaz de permitir que toda a comunidade siga caminhando integrada. Incluir, como se todos fossem familiares de cada um”, conclui o especialista.


Unidos em oração

Todos os sábados, um grupo de pessoas se reúne em oração no Grupo de Estudos Espíritas Mensageiros de Luz. Segundo Anderson Lima, presidente do Grupo, a atividade de irradiação em favor de Castelo do Piauí tem como objetivo neutralizar as energias negativas que pairam sobre a cidade desde que a tragédia aconteceu.

As orações são direcionadas para que as vítimas, os acusados e seus familiares recebam energias divinas e apoio espiritual. “A gente entende que o pensamento tem um poder muito forte. Sentimentos de revolta e de vingança são forças energéticas negativas, que deixam uma aura pesada na cidade”, avalia o espírita.

Ele alerta que as orações devem ser intensificadas devido à data em que o caso completa um ano. “Os sentimentos negativos podem se renovar porque as emoções voltam à tona, principalmente para os pais da vítima que morreu”, observa Anderson.

Seguidores de outras religiões também organizam momentos de prece na cidade. Nesta sexta-feira (27) acontece uma missa em ação de graças, enquanto igrejas evangélicas fazem vigílias.

Seja em momentos de oração ou em reuniões informais, solidariedade, respeito, afeto e acolhimento são palavras que saem fácil da boca dos moradores de Castelo do Piauí, comprovando que o único caminho possível para superar qualquer tragédia é pelo lado do bem.

Por: Nayara Felizardo/Portal O Dia
Fotos: Portal O Dia

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